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A outra volta da volta do parafuso

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Por André Conti

Acho que não tem coisa pior do que saber que você vai perder um trocadilho ou uma informação quando se edita um livro estrangeiro. O jogo de palavras está lá, você reconhece o significado, mas não há maneira de dizer aquilo em português. E aí toca explicar tudo em nota de rodapé: você perde a graça mas não perde a piada. Para quem já contou uma piada e teve que explicá-la na sequência, a sensação é a mesma.

Pior é quando não se pode recorrer ao rodapé. Estou fechando agora o Asterios Polyp, quadrinho brilhante do David Mazzucchelli que publicaremos esse ano. É um livro com uma estrutura muito rígida, cheio de paralelismos ocultos, detalhes reveladores, um troço realmente extraordinário. O Mazzucchelli, que é um sujeito detalhista e obsessivo, passou anos trabalhando no Asterios. E nós demoramos mais de um ano para conseguir contratar o livro e convencê-lo de que faríamos uma edição de qualidade. Ele só topou quando viu o Jimmy Corrigan.

De modo que foi com certa dose de pânico que enviamos o PDF para aprovação do autor. Como o livro será impresso no exterior para garantir a fidelidade das cores, os prazos não podem ser prolongados. Se ele detestasse, só poderia fazer o que faço melhor: chorar.

Foi um dos e-mails de aprovação mais bacanas que já recebi. Ele gostou do resultado, felizmente, mas fez umas tantas observações. Palavras que precisam se repetir em determinados momentos, uma gravata do Asterios que saiu sem cor, uma cena em que a fonte precisa ir gradualmente do itálico para o redondo. O grau de atenção confirmou o que eu achava: Asterios Polyp é um trabalho sério, pensado em todos os detalhes, e não uma obra do acaso. Mesmo que o leitor não perceba o artifício, ele está lá.

O que eu não imaginava é que ele fosse dar falta de uns trocadilhos. Há três momentos intraduzíveis no livro, jogos de palavra e sentido que simplesmente não acontecem no português. Dois não são graves e passam despercebidos. Mas um deles penalizou demais a mim e ao tradutor, o Daniel Pellizzari, e acabou ficando em inglês. Quando o livro sair, vou escrever de novo sobre o assunto e entro em detalhes. Basta saber que o Mazzucchelli foi compreensivo. O que não diminui em nada a nossa dor.

No título é pior ainda. Eu não estava aqui quando publicamos o Mystic RiverSobre meninos e lobos, mas posso imaginar as discussões infinitas. O Gone, baby, gone ficou em inglês mesmo, mas o filme se chamou Medo da verdade. O próximo Javier Marías se chama Los enamoramientos. Boa sorte ao editor.

Esses dias peguei duas situações curiosas na Penguin. Vamos lançar agora A outra volta do parafuso, clássico de terror do Henry James. O livro se chama The turn of the screw, mas em português pode ficar ambíguo: a volta do parafuso? Para onde ele foi? Aqui, o livro sempre se chamou A outra volta do parafuso, mas queríamos resgatar o título original. Preparamos o material promocional, enviamos aos livreiros, imprimimos o folheto de divulgação.

Eis que minha chefe aparece com um livro de diálogos entre o Ernesto Sabato e o Borges, onde eles falam sobre Henry James. No meio da conversa, o Borges elogia a solução espanhola para o título: A outra volta do parafuso. Quem somos nós para discordar do homem? Voltei atrás, rabo entre as pernas, e o livro ficou com o nome aprovado pelo Borges. Mas o material de divulgação já tinha sido enviado. Minhas desculpas ao bom povo que vai ter de recadastrar o título nos sistemas das livrarias.

A outra foi com o Oscar Wilde. Vamos fazer um volume com três peças, entre elas a famosa The Importance of Being Earnest. O título em si é um trocadilho: Earnest é tanto o nome de um personagem da trama quanto um adjetivo, que significa alguém “sério, ativo, diligente, atento, cuidadoso, sincero, convicto etc”. Usamos uma solução mais ou menos consagrada no título: A importância de ser prudente. Mas, olhando a capa final, bateu a dúvida? Esse “prudente” entra como adjetivo (e, portanto, em minúsculas) ou nome?

O padrão inglês e americano deixa o título inteiro em maiúsculas, o que preserva a ambiguidade. Pensamos, pensamos, discutimos, consultamos: nada. E, como bem notou meu chefe, a solução estava na nossa cara. A peça vai se chamar A Importância de Ser Prudente, em maiúsculas e minúsculas, fora dos padrões da editora. Dói demais, eu sei. O que a gente não faz pelos leitores?

* * * * *

André Conti é editor da Companhia das Letras. Trabalha nos selos Quadrinhos na Cia. e Penguin-Companhia, entre outros projetos.
Ele contribui para o blog com uma coluna quinzenal chamada Editando Clássicos.

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